Amanhece. A névoa densa das ilusões começa a se dissipar com
os raios da manhã parturiente. A madrugada prenhe, que carregava em si a cria
com seus olhos ainda fechados, deu à luz uma frágil criatura, atada a afetos,
um projeto de consciência de si sem sustento próprio, que ainda não se ergueu
sobre o seu esqueleto. A criança, o filho da aurora com a escuridão, oprimida por
sua fome, suas fomes a devoram, e seu canto é um grito. Ecoa na terra deserta
do corpo, corpo a dentro um tremor da terra, o som dos caudalosos rios
circulantes nas veias, inundando os vales do microscópico mundo de células, um
ionvisível chamado das estranhas
entranhas; aqui-lá, uma comoção é tempestade, precedida por trovões e raios, então
a emoção desaba na terra do corpo – relâmpagos no âmago. Se emudece este peito
o despeito, o coração, esse mestre de ritmo, tambor incessante, velho xamã,
desperta o estreito liame, reacorda os sentidos... e são tantos os sentidos,
cada um uma nação, a cada um sua própria língua, mas uma delas é muda; amuada,
deixou cair das mãos o sonho que bebia, perdeu os sentidos a criança; a criança
caiu, no mundo, e por isso chorou.
Predestinadas a ser as guardiãs do seu próprio destino, as
mãos frágeis porém firmes, trêmulas diante do fato consumado que é a vida, se
movem no ar em frente ao rosto, tentando dissipar a neblina, na certeza de
encontrar no ar, no vento, a razão de ser do movimento; querem mostrar o rosto,
e oferecer as faces ao olhar, aos misteriosos olhos do tempo... o passado já
está tão longe, nunca o alcançaríamos; não há volta, inútil a revolta; daremos
a volta em torno do si, e longe são as fronteiras, nesse país de maravilhas e tempestades,
de alternas estações, levamos a chave que abre o baú onde se encontra a chave. Há
portas, mas só uma é a entrada, ela se chama estrada...
Tiago Abreu.